domingo, 20 de maio de 2012

“Para não criar mamíferos de luxo”. A expressão do intelectual italiano e militante político do Partido Comunista da Itália Antonio Gramsci, cujo pensamento exerceu profunda influência sobre os intelectuais em educação do Brasil a partir da segunda metade do século XX, denuncia em poucas palavras sua preocupação com a educação e sua relação com o processo de trabalho3. Toda a teoria de Gramsci incorpora categorias marxianas, considerando em suas formulações as origens materiais e históricas de classe, os antagonismos presente na luta de classes (dominantes/exploradores/burguesia e dominados /explorados/proletariado), bem como a importância da luta pela consciência de classe no processo de transformação da sociedade capitalista. O interesse de Gramsci pela educação e pela escola se intensificou a partir da ampliação de seus estudos acerca do Estado capitalista e de sua ruptura com teorias dominantes que influenciavam o movimento socialista da Itália – principalmente Benedetto Croce e Giovanni Gentile. A partir desta fase, Gramsci recuperou a leitura dialética de algumas formulações de Karl Marx e passou a enxergar na escola pública uma das possibilidades concretas de obter-se consciência de classe, associada à idéia do processo de trabalho como um princípio educativo. Num primeiro momento e, resumidamente, fazemos uma exposição dos conceitos principais da teoria gramsciniana e apresentaremos alguns comentários acerca da influência de Karl Marx e Friedrich Engels na elaboração de sua teoria. Posteriormente, tecemos algumas considerações sobre a relação entre o pensamento de Gramsci e os conceitos do processo de trabalho e educação, para explicar no que consiste sua proposta de escola para a classe trabalhadora, a escola profissionalizante, o papel educativo dos conselhos de fábrica e seu conceito de escola “comum, única, desinteressada”, ou seja, a idéia de uma “escola unitária”. Marx e Gramsci: conceitos principais Antonio Gramsci nasceu em 1891 em Sardenha, uma ilha subalterna ao sul da Itália. Membro de uma família pobre, Gramsci sempre apresentou interesse e preocupação com as classes e povos em condições subalternas. Apesar de ter freqüentado aulas com professores de tendência liberal – herdeiros do filósofo Benedetto Croce – e de ter sofrido influência de Giovanni Gentile, Gramsci manteve sempre vivo seu interesse pela teoria marxista, chamando-a de “filosofia da práxis” nos Cadernos do Cárcere e provando esta tendência através de um trabalho de intensa militância, quando se filia ao Partido Comunista da Itália e atua intelectual e politicamente na luta contra o Estado burguês liberal, investindo e inaugurando jornais de apoio ao partido e, posteriormente, se tornando também alvo do regime fascista. Neste sentido, Mochcovitch (1990) afirma que Gramsci trabalha com uma perspectiva crítica ao sistema liberal-burguês de sua época, carregando a classe operária de elementos que possam “encorpar” sua luta pela superação da condição subalterna. [...] a perspectiva de Gramsci é sempre a de elaborar conceitos que ajudem a classe operária e seus intelectuais (seu partido) a firmar a ‘hegemonia’ do proletariado sobre o conjunto das classes subalternas e a disputar a direção intelectual e moral do conjunto da sociedade, visando à tomada do poder político e à alteração da situação de dominação. (MOCHCOVITCH, 1990, p. 10-11). Gramsci retoma a dimensão ontológica de Marx, ao considerar o “ser” a partir de sua incessante busca por satisfazer suas necessidades imediatas e humanas, encontrando no processo de trabalho a única forma de humanizar-se, de sobreviver às intempéries da natureza e dominá-la. O primeiro pressuposto de toda história humana é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal destes indivíduos e, por meio disto, sua relação dada com o resto da natureza. [...] Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX; ENGELS, 1986, p. 27-28, itálicos do autor). Portanto, o homem se distingue dos animais pelo “trabalho”. Sendo este trabalho comum a todos os seres humanos como forma de obter sua subsistência, para a teoria marxista é inadmissível a exploração de uma minoria sob o trabalho da maioria. Isso significa que, enquanto uns trabalham para produzir os bens de subsistência para todos, uma parcela da sociedade desfruta do ócio. “Pois há aqueles, dentre eles, que trabalham e nada adquirem e aqueles que adquirem qualquer coisa e não trabalham.” (MARX & ENGELS, 1999, p. 35). O sistema capitalista, fundado no princípio da propriedade privada dos meios de produção, alimenta-se desta dicotomia entre capital e trabalho assalariado. Para Marx, o tipo de trabalho característico da sociedade capitalista é o trabalho assalariado. Nesta sociedade, existe a classe burguesa que detém a propriedade privada dos meios de produção4 e a classe trabalhadora que possui apenas como propriedade a sua força de trabalho. Cria capital [o trabalho assalariado], ou seja, aquele tipo de propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho assalariado, a fim de explorá-lo novamente. A propriedade, em sua forma atual, baseia-se no antagonismo entre o capital e o trabalho assalariado. (MARX & ENGELS, 1987, p. 118,colchetes nossos). O sistema capitalista alimenta-se deste antagonismo entre capital e trabalho assalariado. Portanto, a garantia de que poucos continuem possuindo e de que a maioria mantenha-se destituída de propriedade é obtida através do contrato entre o poder do Estado e seus cidadãos. O Estado, representante dos interesses da burguesia, portanto, utiliza-se de seu poder coercitivo e ideológico para garantir que o antagonismo entre os interesses de classes que alimenta o sistema capitalista continue presente. O sistema capitalista alimenta-se do antagonismo de classes, pois a apropriação por parte dos capitalistas daquilo que Marx chamou de mais-valia ou lucro só se efetiva através da exploração do trabalho assalariado, ou seja, através da exploração da classe trabalhadora e de sua força de trabalho. Para garantir a manutenção do statu quo5, garantir a continuidade da exploração deste trabalho assalariado, a burguesia precisa garantir, além de uma hegemonia econômica (detenção dos meios de produção: estrutura), também uma hegemonia cultural (influências intelectuais e culturais: superestrutura). Gramsci se apropriou e desenvolveu este conceito de hegemonia burguesa da sociedade civil, que para ele significa “[...] o predomínio ideológico dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas”. (CARNOY, 1994, p. 90). Em uma doutrina da “hegemonia”, Gramsci viu que a classe dominante não necessitava depender apenas do poder coercitivo do Estado ou mesmo de seu poder econômico direto para exercer o seu domínio, mas sim, através de sua hegemonia, expressa na sociedade civil e no Estado, os dominados podiam ser persuadidos a aceitar o sistema de crenças da classe dominante e compartilhar os seus valores sociais, culturais e morais. (Idem, p. 116, itálico e aspas do autor). Carnoy (1994) afirma que Gramsci superou Marx, Engels, Lênin e Trotski no momento em que desenvolveu uma nova concepção da sociedade civil e que elevou o conceito de hegemonia burguesa a uma posição de destaque no âmbito da ciência política. Além disso, ao enfatizar o papel da superestrutura, Gramsci inovou todo o pensamento marxista de sociedade civil, que compreende não apenas todo o conjunto das relações materiais, mas sim todo o conjunto das relações ideológico-culturais, não apenas toda a vida comercial e industrial, mas toda a vida espiritual e intelectual. (BOBBIO, 1999). Gramsci ampliou o conceito marxista de Estado e as relações que estabeleceu entre estrutura e superestrutura fundamentam a explicação das sociedades modernas. Gramsci comunga com a teoria marxista quando se trata da superação da concepção idealista, a qual concebe a sociedade e a história somente a partir das idéias e desconsidera os condicionantes materiais. Entretanto, Gramsci estabeleceu uma relação dialética entre estrutura e superestrutura e pressupõem a existência de fenômenos superestruturais necessários à estrutura. Assim, elevou o conceito de superestrutura desenvolvido por Marx e diferenciou-se deste quando considerou as relações ideológicas e culturais mais importantes do que as relações de produção. Para Marx e Gramsci, a sociedade civil é o fator chave na compreensão do desenvolvimento capitalista, mas para Marx a sociedade civil é estrutura (relações na produção). Para Gramsci, ao contrário, ela é superestrutura, que representa o fator ativo e positivo no desenvolvimento histórico; é o complexo das relações ideológicas e culturais, a vida espiritual e intelectual, e a expressão política dessas relações torna-se o centro da análise, e não a estrutura. (CARNOY, 1994, p. 93). Segundo Soares (2006), Gramsci percebeu que no final do século XIX o Estado não governava tanto pela força e opressão, passou a incorporar as reivindicações dos trabalhadores e a admitir o direito de greve, de mobilização em sindicatos, partidos, de publicações em jornais, votações, etc. Esta nova fase mais “democrática” da organização do Estado capitalista, também traz consigo uma nova característica, que Gramsci vai chamar de luta pela “hegemonia”. (DORE, 2006). Trata-se da luta pelo convencimento da classe trabalhadora a continuar se submetendo àss condições de dominação e subordinação à elite burguesa, agora não mais pelo poder coercitivo, mas uma luta por estabelecer o “consenso” entre as classes. Se o surgimento da sociedade civil mostra o intenso trabalho educativo da classe dominante para garantir o consenso ao seu governo, ele também pode indicar formas de organização das classes subalternas para a conquista da hegemonia. (DORE, 2006, p. 338). A partir de um projeto de superação da sociedade capitalista sob domínio burguês e, considerando este embate entre as classes, Gramsci acrescentou o conceito de “contrahegemonia” ou “crise de hegemonia”. A crise ocorre quando “[...] as classes sociais se separam de seus partidos políticos; a classe não mais reconhece os homens que lideram os partidos como expressão sua.” (CARNOY, 1994, p. 105). Assim, Gramsci aponta para a possibilidade de, a partir dessa ausência de referencial, outros elementos da burocracia ampliarem poder e autonomia, criando uma “crise de autoridade”, “crise de hegemonia” ou “crise geral do Estado”. Uma vez que a superestrutura (hegemonia burguesa) desempenha um papel tão importante na análise de Gramsci sobre o desenvolvimento capitalista, é lógico que sua análise da desintegração do capitalismo também depende da hegemonia, desta vez de sua crise. E com a crise de hegemonia no primeiro plano de sua análise da transformação radical, o Estado passa ao primeiro plano da estratégia revolucionária. [...] o Estado também é um instrumento da ideologia burguesa, de legitimação das necessidades sociais burguesas. [...] Para Gramsci o empobrecimento cada vez maior é apenas um elemento dentro das possibilidades de elevar essa consciência. Mais importante para ele é a desintegração da capacidade do Estado de estender e manter a hegemonia burguesa – isto é, uma crise no sistema de crenças desenvolvidas pela burguesia para servir seus próprios fins. (CARNOY, 1994, p. 107, itálicos do autor). Entretanto, para Gramsci o controle do Estado é apenas um elemento no caminho de um processo radical de transformação da sociedade burguesa e da tomada de poder pelo proletariado, pois a “hegemonia burguesa não é só o Estado” (CARNOY, 1994, p.108). [...] hegemonia significava contra-hegemonia; domínio da burguesia através da superestrutura significava a necessidade de lutar por transformações estruturais fundamentais através do desenvolvimento de novas instituições super-estruturais – e da criação de um novo conceito de sociedade que não fosse burguês, mas proletário. A liderança política passava por uma guerra de posição – ascendência moral e cultural tanto com predomínio econômico. (CARNOY, 1994, p. 116). Porém, antes de tratarmos sobre o que Gramsci chama de “guerra de posição”, devemos esclarecer no que consiste a teoria do Estado gramsciniana, através do que nos apresenta Bobbio (1999): A teoria do Estado de Antonio Gramsci [...] pertence a essa nova história, para a qual, em resumo, o Estado não é um fim em si mesmo, mas um aparelho, um instrumento; é o representante não de interesses universais, mas particulares; não é uma entidade superposta à sociedade subjacente, mas é condicionado por esta e, portanto, a esta subordinado; não é uma instituição permanente, mas transitória, destinada a desaparecer com a transformação da sociedade que lhe é subjacente. (BOBBIO, 1999, p.47). Portanto, sendo o controle do Estado apenas um dos elementos de hegemonia burguesa, não é apenas com a posse e controle do Estado que a classe trabalhadora se tornaria detentora do poder. Consciente do papel do Estado como uma instituição transitória e passível de transformação de acordo com o modelo de sociedade vigente, Gramsci elabora outra estratégia: a “guerra de posição” ou “guerra de movimento”. Segundo Carnoy (1994), este conceito abriga quatro elementos: 1. cada país deve deveria desenvolver uma estratégia de implantação do socialismo em detrimento de estratégias de ordem mundial; 2. organizar a classe trabalhadora, desenvolver instituições e uma cultura proletária que funcionasse como contra-hegemonia, ou seja, confrontar a hegemonia burguesa com uma hegemonia proletária; 3. estabelecer uma constante luta pela consciência da classe proletária e; 4. relacionar o partido revolucionário à classe trabalhadora como um todo. (CARNOY, 1994). É dentro desta estratégia de transformação da sociedade capitalista através da “contra-hegemonia” e da “guerra de posição”, que Gramsci desenvolve sua análise sobre os intelectuais. É preciso educar os trabalhadores para encorajar o surgimento de intelectuais dentro da classe trabalhadora, que defenderiam a transformação da sociedade capitalista através da revolução da classe trabalhadora. Surge a perspectiva educacional do partido, que para Gramsci é fundamental na formação de intelectuais que dêem consistência à luta pelos interesses da classe trabalhadora e, a partir da revolução, estejam capacitados para governar e orientar a gênese de um novo modelo de sociedade. Para Gramsci, a classe dominante sempre tenta corromper intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, na intenção de agregá-los em seus partidos. Em contrapartida, a mesma iniciativa deve ser adotada pela classe operária, na tentativa de agregar intelectuais orgânicos burgueses ao partido e à luta revolucionária. Trata-se da estratégia de fundir: [...] intelectuais profissionais burgueses descontentes, intelectuais profissionais (tradicionais) provenientes do proletariado e intelectuais proletários orgânicos, os pensadores-organizadores com uma concepção de mundo consciente que transcendesse seus interesses de classe. São estes os intelectuais que o partido precisa estimular e mobilizar, despertando os trabalhadores para as suas possibilidades intelectuais, através das funções educacionais do partido. (CARNOY, 1994, p. 115). Portanto, a partir dos conceitos acerca do partido revolucionário e de seus intelectuais se fundamenta a estratégia política de Gramsci que, independente do poder político e do poder do Estado, consistia na construção da independência intelectual e cultural da classe subalterna. Neste momento surge a preocupação educativa gramsciniana, sobre a qual neste próximo item procuraremos nos aproximar na medida em que levantamos alguns elementos importantes. Educação e trabalho em Gramsci No final do século XIX, intensificaram-se as discussões na Europa a respeito da obrigação do Estado supostamente democrático em prover uma educação pública e sobre a generalização do ensino básico. A discussão da escola como dever do Estado vinha acompanhada do debate acerca da “escola comum, única e desinteressada”, o que desvelava e fazia a crítica ao paradoxo entre a formação científica e humanista destinada à elite burguesa e a formação técnica voltada à classe trabalhadora. A consolidação da idéia de dever do Estado para com a educação estava diretamente relacionada ao fortalecimento dos ideários liberais e democráticos burgueses que neste período começam a se cristalizar. Neste contexto, a burguesia deparou-se com um dilema: qual educação oferecer à classe trabalhadora? Gramsci estava presente neste contexto e suas considerações faziam parte deste debate, revelando as relações dicotômicas entre educação cultural e instrução para o trabalho, bem como atividade intelectual e manual. Gramsci teceu críticas ao sistema de ensino da Itália e também à proposta reformista de Giovanni Gentile, quando denunciava o caráter elitista da escola tradicional e o caráter discriminatório da proposta de reforma apresentada por Gentile. Uma de suas críticas à reforma relacionava-se à idéia de uma escola que distinguisse precocemente a formação profissional e a formação intelectual e humanista geral. Gramsci fez a crítica à divisão entre a escola clássica e profissional: “[...] a escola profissional destinava-se às classes instrumentais, ao passo que a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais. “ (GRAMSCI, 1991, p. 118). Assim, a preocupação de Gramsci com a educação tinha relação com a sua crítica ao ensino técnico italiano de caráter pragmático, destinado aos trabalhadores – e estes destinados ao trabalho assalariado, a submissão e exploração pelo capital – e ao ensino humanista italiano, oferecido à burguesia – esta sim destinada à comandar, a dominar, a governar a sociedade capitalista, compondo os cargos na administração pública do Estado liberal-burguês. O processo de trabalho para Gramsci deve ser o princípio educativo, mas não o modelo de escola profissional de sua época (não diferente hoje) que apenas cumpria a função de eternizar às estratificações de classes e a pré-destinação da maioria ao trabalho alienante, sob falsos princípios democráticos. Mas sim uma escola que proporcione as condições para “[...] que cada ‘cidadão’ possa tornar-se ‘governante’ e que a sociedade o ponha, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo [...]”. (GRAMSCI, 2001, p. 50). Na escola atual, em função da crise profunda da tradição cultural e da concepção da vida e do homem, verifica-se um processo de progressiva degenerescência: as escolas de tipo profissional, isto é, preocupadas em satisfazer interesses práticos imediatos, predominam sobre a escola formativa, imediatamente desinteressada. O aspecto mais paradoxal reside em que este novo tipo de escola aparece e é louvadao como democrático, quando na realidade, não só é destinado a perpetuar as diferenças sociais, como ainda a cristalizá-las em formas chinesas.(GRAMSCI, 2001, p. 49). Como os termos são carregados de sentido, julgamos importante esclarecer com qual propósito Gramsci utilizou os termos “comum, única e desinteressada” para caracterizar sua proposta de escola. O adjetivo “comum” não significa que a escola para Gramscideveria ser simples. Não. O termo “comum” quer dizer que a escola para Gramsci deveria ser comum à todos, ou seja, com oportunidadade de acesso à todos. O termo “única” está relacionado à idéia de uma escola não herarquizada de acordo com as classes sociais mais ou menos favorecidas, mas sim escolas de todos os níveis de ensino que prepare de maneira igual os indivíduos às mesmas oportunidades profissionais. Não é a aquisição de capacidades de direção, não é a tendência a formar homens superiores que dá a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola póprio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada função tradicional, dirigente ou instrumental. Se se quer destruir esta trama, portanto, deve-se não multiplicar e hierrarquizar os tipos de escola profissional, mas criar um tipo único de escola preparatória (primáriamédia) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige. (GRAMSCI, 2001, p. 49). A idéia de uma escola “desinteressada” está ligada à uma concepção de educação que oportunize a absorção e assimilação pelo educando de todo o seu passado cultural, acumulado historicamente e que deu origem à sociedade em que o indivíduo está inserido. E seu tempo, Gramsci defendia uma educação que proporcionasse ao educando o conhecimento de toda a história anterior à civilização moderna, condição “[...] para ser e conhecer conscientemente a si mesmo.” (GRAMSCI, 2001, p. 46). Para Gramsci, todo ou a maior parte do processo educativo de um indivíduo, desde sua infância até sua escolha profissional, deve estar calcado em princípios “desinteressados” e proporcionar uma formação humanista geral. [...] o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos discentes) desinteressado, ou seja, não deve ter finalidades práticas imediatas ou muito imediatas, deve ser formativo ainda que “instrutivo”6, isto é, rico de noções concretas. (GRAMSCI, 2001, p. 49, aspas do autor). A partir da crítica à tendência de sua época em pouco valorizar as escolas “desinteressadas” e em difundir as escolas profissionais especializadas, que formavam um aluno com destino pré-determinado, Gramsci apresentou uma linha de raciocínio para chegar à uma solução para esta dicotomia: A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo. (GRAMSCI, 1991, p.118). Para Gramsci, a organização prática da proposta de “escola unitária” ou de cultura geral dependia de uma ampliação dos prédios, do material científico e, principalmente do corpo docente. Para Gramsci a qualidade da relação professor/aluno é muito mais intensa quando limita-se poucos alunos por professor e a idéia de escola para Gramsci é o que ele chama de escola-colégio, equipada com bibliotecas especializadas, salas para trabalhos de seminários, dormitórios e refeitórios. Gramsci chega a admitir que, por ser um novo tipo de escola com vagas inicialmente limitadas, o ingresso dos alunos necessariamente deveria ocorrer por meio de concurso ou indicações. (GRAMSCI, 1991). A escola unitária deveria corresponder ao período representado hoje pelas escolas primárias e médias, reorganizadas não somente no que diz respeito ao conteúdo e ao método de ensino, como também no que toca à disposição dos vários graus da carreira escolar. O primeiro grau elementar não deveria ultrapassar três-quatro anos e, ao lado do ensino das primeiras noções “instrumentais” da instrução (ler, escrever, fazer contas, geografia, história), deveria desenvolver notadamente a parte relativa aos “direitos e deveres”, atualmente negligenciada, isto é, as primeiras noções do Estado e da sociedade, como elementos primordiais de uma nova concepção do mundo que entra em luta contra as concepções determinadas pelos diversos ambientes sociais tradicionais, ou seja, contra as concepções que poderíamos chamar de folclóricas. O problema didático a resolver é o de temperar e fecundar a orientação dogmática que não pode deixar de existir nestes primeiros anos. O resto do curso não deveria durar mais de seis anos, de modo que, aos quinze–dezesseis anos, dever-se-ia poder concluir todos os graus da escola unitária. (GRAMSCI, 1991, p. 122, aspas do autor). Gramsci chama atenção também para a função do prolongamento do aprendizado do aluno nos círculos familiares, geralmente privilégios dos filhos das famílias pertencentes às camadas mais ricas. Além disso, argumenta que os alunos que residem nas cidades possuem uma “bagagem” de conhecimentos que facilita o aprendizado. Neste sentido, apoiada numa rede de auxílios à infância, a escola unitária deve proporcionar a todos os alunos estas mesmas condições de absorção de conhecimentos técnicamente superiores e necessários à aquisição de aptidões pré-escolares e à disciplina de vida coletiva. De fato, a escola unitária deveria ser organizada como colégio, com vida coletiva diurna e noturna. Liberta das atuais formas de disciplina hipócrita e mecânica, e o estudo deveria ser feito coletivamente, com a assistência dos professores e dos melhores alunos, mesmo nas horas de aplicação chamada individual, etc. (GRAMSCI, 1991, p. 123). A proposta de escola unitária fundamenta-se na busca pela emancipação humana e pela aquisição de maturidade intelectual. Gramsci não concordava com o formato do ensino nos liceus, a última fase escolar antes da universidade em sua época na Itália. Criticava a forma dogmática e autoritária dos liceus em face à suposta autodisciplina intelectual e autonomia moral que este nível de ensino deveria desenvolver nos alunos, que só eram efetivamente alcançados no âmbito das universidades. Diante deste quadro, Gramsci considerou decisiva a última fase da escola unitária, em que os alunos poderiam desenvolver disciplina intelectual, autonomia moral e definir as “[...] indicações orgânicas para a orientação profissional.” (GRAMSCI, 1991, p. 125). O estudo e o aprendizado dos métodos criativos na ciência e na vida deve começar nesta última fase da escola, e não deve ser mais um monopólio da universidade ou ser deixado ao acaso da vida prática: esta fase escolar já deve contribuir para desenvolver o elemento da responsabilidade autônoma nos indivíduos, deve ser uma escola criadora. [...] Assim, a escola criadora não significa escola de “inventores e descobridores”; ela indica uma fase e um método de investigação e de conhecimento, e não um “programa” predeterminado que obrigue à inovação e à originalidade a todo custo. Indica que a aprendizagem ocorre notadamente graças a um esforço espontâneo e autônomo do discente, e no qual o professor exerce apenas uma função de guia amigável, como ocorre ou deveria ocorrer na universidade. Descobrir por si mesmo uma verdade, sem sugestões e ajudas exteriores, é criação (mesmo que a verdade seja velha) e demonstra a posse do método; indica que, de qualquer modo, entrou-se na fase da maturidade intelectual na qual se pode descobrir verdades novas. (GRAMSCI, 1991, p. 124-125, aspas do autor e negrito nosso). A proposta de Gramsci para uma escola unitária que promova a maturidade intelectual está diretamente associada ao seu posicionamento político claramente comprometido com a classe trabalhadora. Gramsci, ao mesmo tempo em que desenvolveu uma proposta educacional, defendeu a necessidade de que as instituições proletárias (sindicatos e partidos) se organizassem com o intuito de promover a auto-educação dos trabalhadores, uma educação que conduzisse à emancipação destes em relação ao Estado capitalista. Gramsci apresentou este desafio: construir uma verdadeira “escola unitária”, incumbida da “[...] tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los levado a um certo grau de maturidade e capacidade, à criação intelectual e prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa.” (GRAMSCI, 1991, p. 121). O desafio era o de pensar uma escola socialista unitária, que articulasse o ensino técnico-científico ao saber humanista. Essa seria uma chave para que os trabalhadores pudessem perseguir a sua autonomia e desenvolver uma nova cultura, antagônica àquela da burguesia. A luta dos trabalhadores para garantir e aprofundar a cultura, para se apropriar do conhecimento, traria consigo o esforço e o empenho para assegurar a sua autonomia em relação aos intelectuais da classe dominante e ao seu poder despótico. (ROIO, 2006, p. 312). Portanto, Gramsci trava uma luta contra a escola profissionalizante, interpretando-a como uma formação que obedece à lógica do capital e da produção, o que aumenta e consolida o abismo econômico entre as classes. Com a oferta de um ensino profissional, o Estado democrático causa a impressão de estar oferecendo à todos as mesmas oportunidades de acesso à educação e, consequentemente, uma suposta condição de igualdade de oportunidades em relação aos educados pela e na elite, receptora de uma educação formativa, intelectual, humanista e geral, ou seja, uma educação previamente planejada para formar aqueles que irão governar. A escola formativa e “desinteressada” proposta por Gramsci não convém ao Estado capitalista que, não sendo “ético” e “educador”, não trabalha na direção de oferecer a todos os seus “cidadãos” as mesmas condições de se tornarem governantes. Entretanto, o próprio Gramsci afirma não ter o Estado nem mesmo o trabalho de conservar tal ilusão, escancarando esta intencionalidade. A multiplicação de tipos de escola profissional, portanto, tende a eternizar as diferenças tradicionais; mas, dado que ela tende, nestas diferenças, a criar estratificações internas, faz nascer a impressão de possuir uma tendência democrática. (...) Mas o tipo de escola que se desenvolve como escola para o povo não tende mais nem sequer a conservar ilusão, já que ela cada vez mais se organiza de modo a restringir a base da camada governante tecnicamente preparada, num ambiente social político que restringe ainda mais a “iniciativa privada” no sentido de fornecer esta capacidade e preparação técnico-política, de modo que, na realidade, retorna-se às divisões em ordens “juridicamente” fixadas e cristalizadas ao invés de superar as divisões em grupos: a multiplicação das escolas profissionais, cada vez mais especializadas desde o início da carreira escolar, é uma das mais evidentes manifestações desta tendência. (GRAMSCI, 2001, p. 49-50). Contudo, embora Gramsci reconheça os interesses daqueles que ocupam o Estado em favor da classe dominante, defende a educação pública e de dever do Estado: “Serviços públicos intelectuais: além da escola, nos vários níveis, que outros serviços não podem ser deixados à iniciativa privada, mas – numa sociedade moderna – devem ser assegurados pelo Estado e pelas entidades locais [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 187). Gramsci lança-se na defesa de que o Estado burguês efetivamente democrático tem o dever de oferecer uma escola gratuita aos governados, de formação técnica e geral que lhes ofereça também as condições de governar. A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas que hoje estão a cargo da família, no que toca à manutenção dos escolares, isto é, que seja completamente transformado o orçamento da educação nacional, ampliando-o de um modo imprevisto e tornando-o mais complexo: a inteira função de educação e formação das novas gerações torna-se, ao invés de privada, pública, pois somente assim pode ela envolver todas as gerações, sem divisões de grupos ou castas. (GRAMSCI, 1991, p. 121). Com isso, aponta para a importância de incorporar às reivindicações da classe trabalhadora uma escola realmente formativa, anti-mecanicista, de liberdade e livre iniciativa, uma escola “única e comum”, que garanta o verdadeiro acesso à cultura aos filhos da classe trabalhadora. Não trata-se de uma cultura enciclopédica, mas uma cultura “[...] próxima da vida e situada na história, cuja aquisiação habilita o homem para interpretar a herança histórica e cultural da humanidade e definiar-se diante dela.” (MOCHCOVITCH, 1990, p. 57). Julgamos importante apresentar o posicionamento de Mochcovitch (1990), que trabalha a partir da concepção de que a escola pública idealizada pela classe trabalhadora e pelo pensamento socialista, no limite incorpora os pressupostos da sociedade capitalista e as propostas burguesas para a educação, carregada de promessas de igualdade através de uma escola “única e comum” a todos os cidadãos. Segundo a autora, estes contornos da proposta educacional socialista e do movimento revolucionário apropria-se de características burguesas liberais que foram formuladas num momento histórico em que a burguesia se auto intitulava como emancipadora da humanidade, influenciada pelos ideiais iluministas e jacobinos (Revolução Francesa). (MOCHCOVITCH, 1990). A autora evidencia a cumplicidade desta perspectiva com a proposta de educação de Gramsci, de uma “escola única e desinteressada”. A proposta da escola única e comum mantida pelo Estado e aberta a todos leva às últimas conseqüências o pensamento liberal sobre o ensino. É a sua versão mais radical. Essa concepção da escola e a idéia de obrigação do Estado de prover o ensino público e gratuito – indissociável da ‘promessa’ de igualdade contida no discurso hegemônico da burguesia – são o núcleo das posições historicamente assumidas pelas lutas das classes populares relativas à educação escolar. (MOCHCOVITCH, 1990, p. 50-51). Entretanto, o discurso de Gramsci sobre a escola nasce do discurso sobre os intelectuais, sobre a cultura e o princípio educativo da classe trabalhadora. Para que a escola não reproduza o consenso e a hegemonia burguesa, Gramsci reforça a importância da construção de uma interpretação da cultura própria da classe trabalhadora e, a partir disso, de um novo princípio educativo. A chave para a classe proletária apropriar-se da cultura, do conhecimento, estaria na luta pela autonomia dos intelectuais proletários em relação aos intelectuais burgueses. O trabalho tecnicamente qualificado e produtivo deveria se vincular a um conhecimento mais amplo de cultura científica e humanista, não só para poder gerenciar o processo produtivo, mas a própria administração pública de um novo Estado operário e socialista. Assim é que os trabalhadores, no seu próprio processo de auto-educação, gerariam os seus intelectuais e seus educadores, educando assim o sindicato e o partido. (ROIO, 2006, p. 314). Além do papel do sindicato e do partido na luta pela emancipação da classe trabalhadora, através de suas funções políticas e educativas, para Gramsci os conselhos de fábrica assumem um papel de suma importância. Estes não deveriam assumir apenas a função de administração e operação dos processos da fábrica, mas também uma dimensão educativa cultural e política, na conscientização do operário de sua condição, ou seja, uma democracia operária de base no seio da organização da fábrica, no espaço público. “Gramsci sugere que a liberdade do trabalhador deveria ocorrer a partir do espaço da fábrica, local onde cumpre o seu papel universal de produtor da riqueza social.” (ROIO,2006, p. 314). O conselho deve, então, ser a base e o fundamento do Estado operário e socialista, das suas instituições sociais. Assim, a escola no Estado de transição deve ser uma escola do trabalho que se emancipa, uma escola que constrói e organiza o trabalho livre associado. Nessa escola, a ação laboriosa e disciplinada articula-se ao conhecimento da técnica, da ciência e da vasta cultura humanista. O método e o princípio pedagógico fundamentam-se no processo produtivo fabril, coletivo e solidário. (ROIO, 2006, p. 315). Segundo Roio (2006), para Gramsci o sindicato e o partido exercem menor importância na educação para a emancipação dos trabalhadores ou uma educação para a liberdade, pois o processo educativo deve começar a partir dos próprios trabalhadores, a partir do processo produtivo fundamentando a auto-educação e auto-emancipação do trabalho. Neste sentido, através do conselho de fábrica e da auto-educação dos trabalhadores, estarão sendo formados os intelectuais que irão compor o partido e o sindicato. Surge portanto o projeto da escola que se desenvolve no espaço do trabalho. Embora o movimento dos conselhos de fábrica tenha sido derrotado em 1920 e o fim da fase de “auto-educação” e de “educação do educador” por parte dos trabalhadores do L’Ordine Nuovo, este momento rico (1919-1920) trouxe as seguintes formulações para o projeto da escola do trabalho: O primeiro passo é, portanto, o de aceitar que o educador se deixe educar. O método, a disciplina e a solidariedade próprios do mundo da fábrica deveriam ser a base da escola do trabalho. No entanto, o objetivo da escola do trabalho era o de educar o proletariado para a autogestão da produção e para a administração pública, entendida como autogoverno. Na escola do trabalho é que também seriam lapidados os intelectuais gerados pela própria classe operária, em condições de criar uma nova cultura, distinta e contraposta à da intelectualidade burguesa e mesmo reformista. Logo, a escola do trabalho encontra o seu método e o seu fundamento na ação dos produtores, mas o seu objetivo é o de contribuir para a construção do homem comunista, do trabalhador livre associado. Para isso, é imprescindível o controle da produção e do instrumento de trabalho, o que implica conhecimento técnico e científico. (ROIO, 2006, p. 316). Ao admitir a importância do controle do processo da produção e do instrumento de trabalho, ou seja, do conhecimento técnico-científico, Gramsci admite a importância do trabalho como um princípio educativo. Para Gramsci,[...] o estudo é também um trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também muscular-nervoso: é um processo de adaptação, e um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento. (GRAMSCI, 2001, p. 51). Ao considerar a intervenção do homem no processo de transformação da natureza, socializando-a:[...] Gramsci adquire, desse modo, um novo equilíbrio, o conceito de novo humanismo concretiza-se, assim, como humanismo do trabalho, um trabalho que tem uma dimensão bastante mais ampla que a dimensão didático-moral habitual nas escolas ativas. (MANACORDA, 1990, p. 243). O conceito de processo de trabalho como princípio educativo está relacionado com a necessidade dos homens de produzirem para poderem continuar vivos: Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou por tudo que se queira. Mas eles próprios começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida [...] Tal como os indivíduos manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem, como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX; ENGELS, 1986, p. 27-28). Para a teoria marxista a produção, ou seja, o processo de trabalho é a dimensão ontológica da existência humana e somente através dele que os indivíduos podem se apropriar da natureza. Contudo, na sociedade capitalista, como também em outras formas de sociedade precedentes, o que impera é a divisão entre aqueles que trabalham e aqueles que vivem no ócio graças ao trabalho alheio. Isso significa que “[...] há aqueles, dentre eles, que trabalham e nada adquirem e aqueles que adquirem qualquer coisa e não trabalham.” (MARX; ENGELS, 1999, p. 35). Portanto, as escolas ocupam um papel de suma importância na sociedade capitalista na medida em que contribui “[...] para a formação do aluno trabalhador que interessa ao capital ou podem apontar uma formação “omnilateral” de homens capazes de atuarem na superação da sociedade capitalista.” (ZANELLA, 2003, p. 153). O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural com base no trabalho, na atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo, para a compreensão do movimento e do devir, para a avaliação da soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se projeta no futuro. (GRAMSCI, 2001, p. 43). Ao termo marxista processo de trabalho, que envolve as habilidades humanas físicas para apropriação da natureza na intenção de subsistir, Gramsci vai acrescentar o termo “conexão psicofísica”, que trata-se do fazer e do pensar juntos. Portanto, como já dissemos anteriormente, através do processo de trabalho o homem humaniza-se e é através desta unidade que o homem constitui-se. É este princípio unitário que vai dar vasão ao que Gramsci formula sobre a “escola unitária”, que trata-se tanto da escola enquanto instituição, quanto da luta social pela igualdade, superação dos antagonismos de classe, bem como contra a separação do que significa “trabalho industrial e trabalho intelectual” e “governantes e governados”. (DORE, 2006). Portanto, a relação entre a educação e o processo de trabalho em Gramsci, está longe de ser o que ficou conhecido no Brasil equivocadamente como “escola tecnológica” ou “escola politécnica”, que no limite resultou numa instrução meramente para o trabalho, profissionalizante e pragmática. O que Gramsci propõe com o processo de trabalho como princípio educativo, está relacionado com o que Marx conceitua a respeito de uma “instrução politécnica”. Embora Marx não tenha utilizado estes termos, concebia uma forma ampla de educação, com o aprendizado de muitas técnicas, numa formação intelectual e física. A “escola unitária” representa um novo desenvolvimento do conceito socialista de educação e marca uma ruptura dialética com a idéia de “instrução geral e politécnica” ou de “escola única do trabalho”, desenvolvida no contexto soviético. (DORE, 2006, p. 342, aspas da autora). Portanto, para Gramsci, o processo de trabalho como princípio educativo é imprescindível na formação de novos intelectuais orgânicos para a classe trabalhadora que,organizada, concretize o ideal de uma sociedade emancipadora, onde tanto o trabalho material quanto o trabalho imaterial absorva uma visão crítica da realidade, uma visão coerente e unitária, que leve em conta a racionalidade, a totalidade e a historicidade das relações sociais. Considerações finais A proposta educacional gramsciniana de “escola únitária” pressupõe uma reforma imediata, ou seja, não significa que sua criação deve se dar depois que o socialismo ou comunismo estiverem implementados. Isso não significa dizer que a educação mudaria a sociedade, mas que a implementação da proposta gramsciniana de escola está dialeticamente ligada à extinção do modelo de escola atual. O processo de trabalho como o princípio educativo, ponto central nos conceitos que Gramsci desenvolveu sobre a educação, está calcado na idéia de que o trabalho não pode ser dever de apenas alguns. Poucos não podem viver à custa do trabalho de muitos. Através do processo de trabalho o homem humaniza-se, portanto, todos os homens devem submeter-se ao trabalho. O processo educativo deve estar alicerçado nestes princípios. É desta dimensão ontológica que Marx aponta o trabalho como um princípio educativo. Trata-se de um pressuposto ético-político de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempéries e criar seus meios de vida. Socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência, pelo trabalho, é comum a todos os seres humanos, é fundamental para não criar indivíduos, ou grupos, que exploram e vivem do trabalho de outros. Na expressão de Antônio Gramsci, para não criar mamíferos de luxo. (FRIGOTTO, 2001, p. 41, itálicos do autor). Portanto, para Gramsci a “escola unitária” constitui-se numa proposta educacional voltada para a emancipação da classe trabalhadora. O compromisso político de Gramsci para com a superação da sociedade capitalista e implementação de um novo modelo de sociedade, fica claro a partir da sua concepção do processo de trabalho. Embora não defenda que uma educação “desinteressada” deva aguardar a superação da sociedade capitalista, a condição para sua efetiva implementação está condicionada à superação deste modelo de sociedade que sobrevive à custa da exploração do trabalho. Referências BOBBIO, N. Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil. São Paulo: Editora Paz e Terra S.A, 1999. CARNOY, M. Estado e teoria política. São Paulo: Editora Papirus, 1994. SOARES, R. D. Gramsci e o debate sobre a escola pública no Brasil. Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n.º 70, p. 329-352, set./dez. 2006. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br . Acesso em: 02 de abril de 2007. FRIGOTTO, G. A nova e a velha faces da crise do capital e o labirinto dos referenciais teóricos. In: FRIGOTTO, G.; CIAVATTA, M. (org.). Teoria e educação no labirinto do capital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Volume 2, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. ___________. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 8ª edição. Rio de Janeiro-RJ: Civilização Brasileira, 1991. MAGRONE, E. Gramsci e a educação: a renovação de uma agenda esquecida. Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n.º 70, p. 353-372, set./dez. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 02 de abril de 2007. MANACORDA, M. A. O princípio educativo em Gramsci. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1990. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1986. __________________. O manifesto do partido comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1999. MOCHCOVITCH, L. G. Gramsci e a escola. São Paulo: Editora Ática S.A, 1990. ROIO, M. D. Gramsci e a educação do educador. Caderno Cedes, Campinas, vol. 26, n.º 70, p. 311-328, set./dez. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 02 de abril de 2007. ZANELLA, J. L. O trabalho como princípio educativo do ensino. Campinas, SP: editora da Unicamp (Tese de doutorado), 2003. Notas 1Maria Isabel Moura Nascimento, doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, professora adjunta da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa "História, Sociedade e Educação" dos Campos Gerais - PR: HISTEDBR/UEPG. Endereço Eletrônico: misabel@lexxa.com.br. 2Denise Kloeckner Sbardelotto, mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Estado, Educação e Trabalho – GEEPET. Endereço eletrônico: deniseklsb@yahoo.com.br. 3 “Salientamos que Marx não utiliza a expressão o trabalho mas a expressão o processo de trabalho. Essa distinção é crucial. Se Marx estivesse preocupado em definir o que é o trabalho, certamente estaria no âmbito de numa metafísica idealista, em que o conceito obtido através de um processo de abstração seria eterno, fixo e imutável. Portanto, a preocupação de Marx não é conceituar o trabalho para depois explicar o real. Ao investigar “o processo de trabalho” Marx está mostrando, simultaneamente, como esse processo de trabalho é permanente, enquanto valor-de-uso, e como está se transformando historicamente desde a constituição do homem como ser natural/histórico que se produz nas diferentes sociedades.” (ZANELLA, 2003, p. 29). 4 São comuns as interpretações equivocadas a respeito do significado de propriedade privada dentro do projeto comunista. O equívoco recai sobre a idéia de que na sociedade socialista todos teriam suas casas, carros, bens de consumo confiscados pelo Estado (até esposas! No tempo de Marx as esposas não deixavam de ser consideradas como “propriedades” no interior de muitas famílias conservadoras, tanto que chegaram a acusá-lo de também propor a partilha das mulheres na sociedade comunista). É importante observar que, quando Marx e Engels propõem um novo modelo de sociedade, que em última instância seria o comunismo, o fim da propriedade privada significaria a abolição da propriedade privada dos meios de produção e não de bens particulares de subsistência ou as mulheres. “O comunismo não priva homem algum do poder de se apropriar de produtos da sociedade. Todo o que ele faz é privá-lo do poder de subjugar o trabalho de ouros através de tal apropriação.” (MARX & ENGELS, 1999, p. 35). Na primeira fase da revolução, no socialismo, o Estado seria tomado pela classe trabalhadora, confiscaria os meios de produção e, com a passagem para o comunismo, o Estado seria dissolvido naturalmente na medida em que fosse estruturada uma nova organização da produção e da distribuição do que fosse produzido pela sociedade. 5 Statu quo é uma expressão de origem latina (in statu quo ante) que significa o estado atual das coisas ou situações. 6 Gramsci (2001) afirma existir diferença entre “educação” e “instrução”. Contudo, afirma que esta distinção foi exageradamente colocada pela proposta pedagógica idealista e que não se pode dizer que a instrução também não seja educação: “Para que a instrução não fosse igualmente educação, seria preciso que o discente fosse uma mera passividade, um ‘recipiente mecânico’ de noções abstratas, o que é absurdo, além de ser ‘abstratamente’ negado pelos defensores da pura educatividade precisamente contra a mera instrução mecanicista.” (GRAMSCI, 2001, p. 44). Gramsci (2001) afirma que a falta de unidade entre instrução e educação e, portanto, entre escola e vida só pode ser resolvida a partir do trabalho docente. A função do professor, enquanto indivíduo consciente das diferenças naturais entre o tipo de sociedade e de cultura do educando e de si mesmo, deve ser a de formar o educando sob o cenário de luta entre o tipo superior e o tipo inferior. (GRAMSCI, 2001). Parece-nos que este conceito, se não tratado com o devido cuidado, pode nos levar à um ensino sob princípios ideológicos calcados em interesses hegemônicos de classe, representados pelo docente, caso não se tratar de um profissional devidamente politizado e comprometido com os interesses das classes subalternas. Artigo recebido em 01/09/07 Aprovado para publicação em 16/06/2008. Parte de nossa pesquisa sobre Grasci Andreia Antonio Mak Robson

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